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O gado deu cabo dos quintais

 

A notícia da falta de bens de primeira necessidade na ilha do Corvo, foi profusamente difundida pelos meios de comunicação social nacional. Ávidos de sensacionalismo, e à falta de temas mais apelativos, jornais, rádios e TV's falaram do assunto, como se uma ilha inteira estivesse a morrer à fome.

Devem ter-se admirado os agricultores a sério, ao ouvirem reclamar que faltavam: fruta, legumes, manteiga, queijo, cebolas, alhos, géneros que qualquer casa farta de uma localidade rural não deixa de acautelar, no fresco da loja, para fazer face aos meses de normal carência.

Qualquer daqueles bens de primeira necessidade produzia-se nos quintais de casa e até a manteiga, e mais recentemente os iogurtes eram confecionados pelas donas de casa. E tão apetitosos que eles eram, sobretudo o queijo corvino curado.

Pelos vistos, a monocultura da vaca conseguiu acabar, também no Corvo, com o hábito antigo de lavrar a terra, de fazer sementeiras dos haveres de casa, e até de semear milho para pão e alimento de animais. Será que também acabaram com laranjeiras, bananeiras e outras fruteiras que, nesta quadra do ano, produzem saborosos e variados frutos?

A ser assim, algo vai mal na economia do Corvo e de outras ilhas também, onde estes problemas causam aflição nos tempos de invernia.

Nos finais da década de 70, quando em seis das nove ilhas não havia nem portos comerciais, nem aeroportos, era frequente, no inverno, as populações ficarem privadas de gaz e de farinha para pão. Levantavam-se protestos, acusações a operadores marítimos e responsáveis governamentais, invocando abandono das “ilhas mais pequenas”, mas só quando o mar o permitia é que o abastecimento se efectuava.

O Padre Manuel Rita, o correspondente corvino mais solicitado nessas circunstâncias, nas suas muito judiciosas crónicas radiofónicas, afirmava porém, que os seus concidadãos estavam de tal modo habituados às falhas de abastecimentos que não havia casa que não possuísse uma ou mais arcas frigoríficas para prover a falta de bens alimentares, nomeadamente, o peixe e a carne.

A vida alterou-se na mais pequena ilha e nas demais, após a construção de infraestruturas de transporte, o crescimento económico trouxe um certo desafogo financeiro das famílias, mas antigos hábitos do cultivo de bens alimentares perderam-se.

Os açorianos das zonas rurais e urbanas consomem, presentemente, legumes e até batata nova do continente, cebolas e hortaliças espanholas, alhos chineses, maçãs chilenas, abacaxi da Costa Rica, laranja da África do Sul, leite espanhol, queijo francês...e a lista tão longa que é, fica por aqui.

Comemos esses produtos e não questionamos se eles têm excesso de pesticidas, se são tragénicos, se as águas das regas estão ou não inquinadas, etc. Ficamos deliciados com as aparências, pois os olhos também comem, e descuramos uma informação detalhada que qualquer produto deveria trazer.

Há meia dúzia de anos, um responsável pela cadeia “Modelo” contou-me que a empresa tinha muita dificuldade em fornecer produtos frescos na superfície comercial da Horta, porque não havia produtores locais que assegurassem o abastecimento. Os produtos hortícolas provinham ou de São Miguel ou de Lisboa, mas isso aumentava o seu custo e diminuía o prazo de validade. Para contrariar isso foi até incentivado o empresariado agrícola faialense, mas sem resultado.

Sou defensor de que é necessário proceder novamente ao cultivo das hortas ao pé de casa, através de práticas biológicas que protegem a saúde e ajudam os orçamentos familiares.

A crise económica a que estamos sujeitos não favorece consumismos e gastos supérfluos, mas pode reeducar as pessoas no consumo do indispensável, aproveitando-se ao máximo pequenos quintais para o cultivo de produtos alimentares e ornamentais.

O exemplo do Corvo faz-nos pensar que fomos longe demais na importação de bens que, há poucas décadas, produzíamos para uso próprio e para servir a vizinhança.

É que o progresso também tem inconvenientes.

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